Pergunte ao sertanejo se ele anda de Camaro

Dizem que a cultura goiana vive seu auge, que o sertanejo está sendo realmente valorizado. Catira que é bom ninguém tá dançando
Isadora Otoni


Até a primeira metade do século XX, a ocupação do espaço goiano era predominantemente rural. A identidade cultural do estado era, portanto, a sertaneja. Devido à explosão do sertanejo universitário, o senso comum é de que a cultura goiana nunca esteve tão em voga, tão valorizada. No entanto, a cultura sertaneja não se encaixa com sertanejo universitário.

A dissertação “Felicidade engarrafada: Bebidas alcoólicas nas músicas sertanejas” revela, por exemplo, que dos 48 artistas do gênero mais famosos segundo o site “www.letras.terra.com.br”, apenas 7 não possuíam músicas relacionadas ao consumo de álcool. Um possível resumo das 243 letras que a pesquisadora Mariana Lioto catalogou é a música “Eu vou zuar e beber, vou locar uma van e levar a mulherada lá pro meu AP”, de Henrique e Diego.

Isso mostra que outro tema recorrente do sertanejo universitário é a ostentação, como no hit Camaro Amarelo da dupla Munhoz & Mariano: “Agora eu fiquei doce igual caramelo, tô tirando onda de Camaro amarelo". Uma pesquisa no Google evidencia que não só as letras giram em torno de uma felicidade material (Tipo Jurerê e Vem Ni Mim Dodge Ram), mas também os clipes trazem a imagem de um homem branco, heterossexual que se impõe às mulheres e, acima de tudo, rico (Piradinha e Empinadinha).

Não vou entrar no domínio do machismo, porque a tradição goiana nunca foi a de igualdade de gêneros. Entretanto, não identifico o homem sertanejo como a figura predominante no sertanejo universitário. Provavelmente essa nem é a ideia, então precisamos parar de achar que a cultura goiana está sendo valorizada.

O povo goiano tem origens de indígenas (os Goyá, oras) e de quilombolas (encontrei registro de pelo menos 12), além dos bandeirantes que nos colonizaram. Nossa cultura não é tradicionalmente europeia.

Quando penso em cultura sertaneja, lembro do que minha professora da primeira série tentou resgatar no imaginário de seus alunos. Os mutirões, por exemplo: era comum na sociedade rural que os vizinhos realizassem um trabalho coletivo para alguém que estava necessitando, e em troca, o necessitado oferecia uma festa. Nesses eventos, tocavam sanfona, dançavam catira, bebiam, é claro, e também se serviam de banquetes típicos (outra prova de que a cultura goiana não está tão em voga é que em São Paulo só temos dois restaurantes típicos. Eu tô com saudades da nossa pamonha, galera).

E não preciso ir tão longe da minhas próprias experiências. Meu pai morou na fazenda até os 7 anos, voltando todas as férias para roça até os 16 anos. Ele me contou que ouviam só as rádios AM porque lá não pegava FM, destacando o Programa do Zé Bettio, de música caipira, que fez muito sucesso nos anos 80. A agricultura da família era bem pequena, e tudo era construído com coletividade.

Da fazenda de nossa família, eu lembro de quando nos reuníamos para fazer pamonha: desfolhar o milho, tirar os “cabelos”, ouvir um modão sertanejo e fofocar sobre todo mundo da cidade inteira.

Os eventos mais bonitos e ricos que vi na cidade em que nasci, por exemplo, eram os religiosos. As procissões que passavam na frente de casa, com todos segurando velas acesas, enchiam meus olhos. A Folia de Reis, que também está presente em outros estados, me deslumbrava com comidas típicas, músicas poéticas, instrumentos e figurinos artesanais e palhaços que me amedrontavam.

Fica aqui um desejo de que não reduzam mais Goiás ao sertanejo universitário, e de que o sertanejo universitário termine sua graduação.

O sertanejo que meu pai lembra:

Legenda foto: Encontro de Folia de Reis em Goiânia. Créditos: Comissão Goiana de Folclore

This entry was posted on domingo, 15 de fevereiro de 2015. You can follow any responses to this entry through the RSS 2.0. You can leave a response.

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